Conta-se que alguns cabalistas tinham adquirido o poder de criar e dar vida a um ser, quase humano, que lhes servia como escravo, cumprindo as suas vontades – um Golem (גולם). Esse ser teria sido criado a partir do barro e adquiriu vida ao ter sido insuflado com um sopro de ar, entretanto, esse ser não tinha alma, porque não era criação de Deus. Ele também não falava e não tinha inteligência própria. Ele apenas “trabalhava”, ou seja, executava tarefas para satisfazer as vontades do seu criador, mas se fugisse do seu controle, o Golem passava a ser seu inimigo e agia contra ele.
Conta-se que o Golem tinha palavras mágicas gravadas na testa que o mantinham animado e davam todo o poder de controle ao seu criador. Uma delas é a palavra EMET (אמת), que significa “verdade” em hebraico. Diz-se que se a primeira letra de EMET fosse apagada para formar MET (מת), que significa “morto” em hebraico, o Golem seria neutralizado ou destruído ou ainda que, se uma das letras fosse apagada, o Golem ficaria livre da sua escravidão e se voltaria contra o seu criador.
Golem da vida real
O Golem é “um ser ou uma coisa” criada pelo homem, o qual anima a sua existência. Essa energia que anima esse “ser ou coisa” é controlada pelo homem, mas apenas enquanto ele estiver em equilíbrio e harmonia com sua alma. Quando o homem deixar seu ego controlar essa “coisa”, ele perde o seu controle e é isso que mais acontece hoje em dia, uma vez que o ser humano tem dado mais valor ao seu ego do que à sua alma.
Atualmente, na nossa cultura, existem muitos filmes, novelas, animes japoneses, jogos de papel, alguns episódios de desenhos infantis como, por exemplo, dos Simpsons e do Pokemon, que trazem o conceito do Golem. O Frankenstein do filme de Mary Shelley também é considerado um Golem.
Neste texto usarei o conceito do Golem de forma metafórica. Se pensarmos um pouco, veremos que temos muitos Golens a nosso serviço ou à nossa volta, e porque não dizer, dentro de nós mesmos. O Golem atual é criado conforme a vontade, a necessidade ou a ambição do ser humano.
Num primeiro entendimento, o Golem pode incorporar um recurso usado na nossa vida diária, algo de utilidade diária, sendo muitas vezes imprescindível, mas que invariavelmente, lhe domina e escraviza. O dinheiro, por exemplo, é um Golem da nossa vida atual. Podemos optar em viver “com o seu controle” ou “sob o seu controle”. Se estivermos no controle dele, usando-o de forma moderada, consciente e altruísta, ele nos servirá atendendo a todas nossas necessidades, trazendo-nos grandes benefícios. Entretanto, se estivermos “sob o seu controle”, ele passa a nos levar cada vez mais para o desequilíbrio, tanto material quanto psíquico. Sim, porque a ambição pode se tornar desenfreada, assim como o descontrole financeiro, e as dívidas podem nos levar ao desespero, tirar nosso sono e até nossa vida.
A tecnologia, de uma forma geral, é um Golem para o ser humano, que a usa para atender às suas vontades e muitas vezes permite-se escravizar por ela. Em filmes de ficção também vemos máquinas e robôs inventados pelo homem, que a princípio estão a seu serviço, se voltarem contra ele próprio. Atualmente, os recursos tecnológicos são essenciais e imprescindíveis – não conseguimos mais imaginar nossa vida sem eles. A internet e o celular, por exemplo, se ficarmos sem eles perdemos até nossas referências. Se um Banco ficar com o sistema “fora do ar”, todos ficam sem ação e desnorteados. Assim, tornamo-nos “escravos” da tecnologia e também suas vítimas, pois inúmeras são as pessoas que já foram lesadas material ou moralmente por causa dela.
Também podemos encontrar muitos Golens à nossa volta nas ruas, no trabalho e até quem sabe dentro de casa… São criaturas que parecem realmente ser feitas “só de barro”, desprovidas de “alma”, de inteligência, de expressão, além de não enxergarem e não escutarem…
Será que uma doença também pode ser um Golem? Isso acontece quando a pessoa não mais a controla e passa a ser controlada por ela, ou seja, a pessoa dá “vida” a essa doença, que a domina e escraviza, fazendo com que ela seja o centro de tudo.
Assim, podemos perceber que quando o homem está dominado pelo seu ego e voltado principalmente para a matéria, simbolicamente as “palavras mágicas são apagadas da testa do seu Golem”, o que significa que esse Golem passou a ser usado para fins prejudiciais e que o homem passou a ser controlado pelo mesmo, tornando-se seu escravo. Basta viver em função do deslumbramento da matéria ou das ilusões alimentadas pelo nosso ego, para que sejamos capazes de criar um Golem particular.
O Golem, entretanto, deve ser um meio e não um fim, algo que nos serve e não algo a que servimos, assim ele ficará sempre a nosso serviço, obediente e indispensável. Tudo neste mundo está aqui para nos servir, tudo nos é emprestado por Deus, para atender às nossas necessidades. Nada é nosso – só temos o “direito de uso” e, portanto, deveríamos ter a consciência de saber usufruir das coisas em vez de querer ser o seu dono ou viver em função delas.
Aqueles que permanecem em harmonia com as leis divinas, quando recebem qualquer “bênção”, sempre sentem o desejo de compartilhar, seja, dinheiro, carro, casa, conhecimento, dotes artísticos, energia, oração. Aqueles que não sucumbirem à tentação, não cairão na armadilha do Golem. A força negativa do Golem está ligada, portanto, com o nosso ego, que se sobrepõe ao nosso Eu Interior (alma), e dependendo da força que cada um lhe dá, ele acaba por promover a tragédia, o ódio e o crime que afeta não só a nós mesmos como as outras pessoas.
Sabemos, nem que seja intuitivamente, que toda forma de vida, qualquer que seja ela, depende do equilíbrio. A Cabala mostra-nos o “caminho do meio”, a coluna central, onde o homem segue em linha reta ao encontro de si mesmo. É o caminho do “orai e vigiai” que Jesus nos ensinou. Por esse caminho, o homem não mais vai “bater a cabeça” de um lado para o outro, como por exemplo, ora alegria demais, ora tristeza demais; ora dinheiro sobrando, ora a falta dele; ora muita comida, ora nenhuma; ora altruísmo, ora egoísmo; ora amor, ora ódio…
O ser humano é um ser em evolução e, para tanto, ele necessita aprender a encontrar esse equilíbrio na sua vida, o que às vezes demora muitas vidas, mas só na dor do desequilíbrio é que ele aprende a dominar seus impulsos e excessos mundanos. A vida material deve se equilibrar com a espiritual, e para isso devemos aprender a usar os recursos do mundo material para nosso benefício, ou seja, para nossa evolução, e não contra nós.
A sociedade moderna é materialista e, por ter os valores invertidos, não consegue enxergar o grau da sua dependência com o mundo material. Assim, perdemos o controle sobre nossos Golens. Não conseguimos mais dar valor às coisas simples, puras e às espirituais. Não conseguimos enxergar o desequilíbrio e os excessos aos quais somos submetidos. É necessário um esforço muito grande para aceitarmos que existe uma Força Superior que nos rege além dessa vida material e, indubitavelmente que nos quer de volta, mas pelo nosso livre-arbítrio. Tudo tem dois lados, assim como o Golem, mas dependerá da conscientização de cada um para saber como usá-lo com o intuito de contribuir para transpor cada etapa do seu crescimento espiritual.
Os Golens que criamos não são apenas aqueles que dizem respeito à satisfação dos nossos desejos materiais, eles expandem também seu domínio para dentro de nós mesmos. Nossa capacidade de raciocínio, nossa inteligência e conhecimento podem igualmente, transformar-se no nosso maior inimigo. Assim, ao invés de usarmos nosso conhecimento para compartilhar e evoluir, para aceitar as diferenças e as nossas imperfeições, deixamos que esse conhecimento e potencial de inteligência nos conduzam para a vaidade e o orgulho. Não enxergamos e nem ouvimos coisas que achamos estar em desacordo com nossa percepção e conhecimento por medo de mudar, e assim, nos apropriamos da verdade. Não aprendemos a discordar do outro sem gostar menos dele. Normalmente, riscamos da nossa atenção as pessoas que nos questionam ou não concordam conosco. Na realidade, nos escondemos atrás de “máscaras” que sustentam apenas a aparência de bondade e criamos outro Golem, a “palavra”, com a qual podemos construir ou destruir, tanto a nós mesmos como a outrem.
Por darmos todo o poder ao Golem, transformamos nosso ego que está por trás de tudo isso, em nosso maior inimigo. Ele passa a nos escravizar e destrói nossas maiores qualidades: as do coração. Reconhecer nossos Golens é o primeiro passo para enfrentá-los, porque tomamos consciência da sua existência, podendo a partir daí nos munirmos de toda a coragem para colocá-los no seu devido lugar, assumindo o controle e o equilíbrio da nossa vida. O homem precisa superar seu ego para controlar os seus Golens.
É preciso coragem para se desvencilhar do atraente trono da imagem que fazemos de nós mesmos. É preciso muita coragem para nos despir do nosso ego, ficarmos “nus”, sem as “máscaras” que criamos como Golens, que acabaram se virando contra nós mesmos. É preciso mais coragem ainda para cuidar dos nossos sentimentos, a fim de conduzi-los ao amor incondicional, pois sem essa atitude não teremos unidade de sentimentos e assim não conseguiremos nos unificar em Deus.
A vida é rica em insights e oportunidades para reconhecermos não só nossas qualidades, mas também nossas imperfeições. É tirar o véu do Golem da vaidade e orgulho. É conhecer-se a si mesmo. Aproveitemos, pois, as oportunidades que a vida está nos dando, como buscadores, estudiosos, para dominar os Golens da nossa vida e os transformarmos em um meio de colaborar com a nossa evolução espiritual – sem ilusões, sem amarras e sem apegos.